Bravura Indômita | Joel e Ethan Coen fazem um raro filme sem cinismo, fiel ao espírito do romance original


Bravura Indômita de 1969 é um anacronismo. Henry Hathaway, diretor de faroestes desde os anos 30, não aproveitou o potencial do romance de 1968 do jornalistaCharles Portis em que o filme se baseia. Nos anos 60 o western revisionista, menos maniqueísta e mais crítico, já estava consumado no cinema - e a literatura de Portis se encaixa muito bem nessa tendência - mas Hathaway fez um filme classicista, suprimindo duas passagens do livro que ironizam o mito do cowboy: o desafio de tiro ao alvo e o desfecho.
Bravura Indômita (True Grit, 2010), de Joel e Ethan Coen, altera o miolo do livro mas é mais fiel ao espírito cômico de Portis. De um filme dos dois, de qualquer forma, humor é o que se espera. Ainda assim, o remake não deixa de ser uma novidade no currículo dos irmãos, que sempre trabalharam com personagens à deriva, pegos de surpresa pelo acaso, e agora têm na mão tipos que se dirigem frontal e conscientemente aos seus destinos.
A começar por Mattie Ross (Hailee Steinfeld), garota de 14 anos que está decidida a vingar a morte do pai. Para perseguir o responsável, ela contrata um federal, Reuben "Rooster" Cogburn (Jeff Bridges). Hathaway apresenta Rooster como uma autoridade, descarregando prisioneiros de mais uma caçada. No remake, a primeira aparição do federal fica pra depois; Mattie foi procurá-lo e Rooster estava defecando na casinha.
A ideia não é ridicularizar o federal, mas eliminar a aura que o protege, como se Rooster precisasse provar, no novo filme, o seu valor a partir do zero. O teste começa de fato a partir da travessia do rio - cena que os Coen adiantam em 15 minutos, em relação ao filme de 1969.
Mostrar Rooster no seu habitat e dedicar mais tempo à relação do federal com a menina na mata é essencial para o novo Bravura Indômita. Além de acelerar a trama até este ponto, os Coen fazem uma mudança na rota em relação ao original - afastar temporariamente o terceiro protagonista, o ranger texano LaBoeuf (Matt Damon) - para fortalecer os laços do velho com Mattie. É aí que entram os momentos de nonsense dos irmãos, como a cena do urso montado. Bravura Indômita é um filme sem cinismo, embora tenha, como um legítimo Coen, a marca do absurdo.
Se o filme de 1969 é anacrônico, o que faz do novoBravura Indômita um faroeste condizente com a sua época? O tratamento que os irmãos dão a Mattie. Ela não é só uma aspirante a pastora com passagens da Bíblia na ponta da língua, nem apenas uma muquirana com vocação para negociar gado. O remake enxerga em Mattie o desabrochar de uma mulher. Dois homens disputam a atenção dela, afinal, e o roteiro dos Coen, nestes tempos pós-feminismo, não elimina a tensão sexual dessa equação (as palmadas de LaBeouf já estavam no original, mas o diálogo à noite, em que Mattie e o ranger trocam confidências, é inédito).
A partir daqui o texto contém spoilers do final do filme.


Como Rooster - mesmo bêbado, mesmo caolho - não deixa de ser o "galo", o herói da história, não é difícil adivinhar quem Mattie "escolhe" no final. Primeiro, os Coen enquadram Jeff Bridges à moda antiga, como nos faroestes fordianos, só com sua silhueta contra a luz na saída da mina e na boca do poço de cascavéis. O rosto de Hailee Steinfeld iluminado no escuro com o lampejo dos disparos da arma de Rooster é um dos planos mais bonitos do filme.
O lance definitivo: ao contrário do livro e do filme de 1969, o Rooster dos Coen não usa fumo mascado para chupar o veneno da picada da mão da menina. Ao usar a boca, Bridges simbolicamente a beija. Nessa hora percebe-se que Mattie Ross está apaixonada, insinuação que o epílogo do filme, fiel ao do romance, vem comprovar. Há todo um ideal de hombridade inscrito ali. Por mais torto que seja, Rooster não deixa de ser um ícone - e é disso que os faroestes revisionistas tratam.
Por Marcelo Hessel

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